Newsletter da APEM

Editorial da APEMNewsletter - Junho/Julho - 2021

APEMNewsletter Junho/Julho de 2021

2021|2023 Vamos recuperar? Olhar o copo meio cheio e meio vazio

No primeiro dia do mês de junho, Dia Mundial da Criança, foi apresentado o Plano de Recuperação das Aprendizagens 21|23 Escola+ (Plano) pelo Ministro da Educação, seguido da intervenção do Primeiro-Ministro a realçar a importância do mesmo.

Não foi um assunto menor.

Este Plano, destinado aos alunos dos ensinos básico e secundário, visa, precisamente, a recuperação e consolidação das aprendizagens e a mitigação das desigualdades decorrentes dos efeitos da pandemia da doença COVID-19, de acordo com o Despacho n.º 3866/2021 do Secretário de Estado Adjunto da Educação.1

Tal como referido na Introdução do Plano2 , a sua conceção resultou de “um conjunto alargado de auscultações a alunos, professores, diretores, peritos, ONG, e representantes dos vários setores da educação”, assim como também das sugestões e recomendações do Grupo de Trabalho criado especificamente para o efeito.

O Plano que agora temos disponível merece uma leitura atenta de todos. Foi o que procurámos fazer.

E neste Editorial de final de ano letivo, quisemos apresentar e partilhar a nossa leitura do documento e a projeção que fizemos da sua operacionalização e das possibilidades de melhorias concretas nos quotidianos das escolas e nas práticas educativas numa perspetiva de recuperação global e integrada de aprendizagens.

A abordagem de análise de conteúdo que realizámos sustentou-se na conceção de uma educação holística sedimentada numa “cultura científica e artística de base humanista”, como referido no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória3. Essas foram as nossas lentes.

Numa primeira conclusão, podemos afirmar a nossa concordância com os sete objetivos estratégicos globais, sendo que as áreas que abrangem são de diferentes categorias e sua concretização aponta para responsabilidades tanto individuais como, coletivas e partilhadas. Assim, é necessário uma leitura e compreensão articulada e integrada das 50 medidas que se apresentam neste Plano e que se estruturam em três eixos, a saber: 1) ensinar e aprender; 2) apoiar as comunidades educativas e 3) conhecer e avaliar.

Vamos por partes e comecemos pelo início.
O Plano elenca na Introdução as medidas da política educativa dos últimos 5 anos relativamente aos recursos humanos para o trabalho nas escolas e as medidas excecionais que foram tomadas em julho de 2020 e em janeiro e março de 2021 para enfrentar os problemas decorrentes da pandemia, assumindo o governo “a responsabilidade de garantir instrumentos de mitigação das desigualdades bem como de apoio às escolas para a operacionalização desses instrumentos”.

O aglomerar de problemas com os que já vinham do período pré-pandemia e agora ainda mais evidenciados pelo contexto atual, complexificam diagnósticos e a resolução dos mesmos torna-se ainda mais difícil.

As medidas já foram muitas, outras apenas anunciadas, mas para a música na educação ainda mais difícil se tornou a situação, como temos vindo a referir em editoriais anteriores, desde março de 20204.

Do muito que temos lido e estudado sobre os efeitos da pandemia e do confinamento no desenvolvimento das crianças e jovens e nos processos de ensino e aprendizagem, podemos concluir que as dimensões socio-afetivas e emotivas terão sido as mais afetadas, tanto pelo afastamento social exigido, como pela disrupção abrupta da rotina escolar. E essas dimensões são as que mais implicações têm para a regularização dos processos de ensino e aprendizagem, sendo que estão presentes nos objetivos do Plano.

Aliás, logo em março de 2020, referimos as recomendações da UNESCO5 assim que publicadas, sendo a recomendação n.º 4 - a que diz respeito à prevalência dos desafios psicossociais sobre os problemas educacionais - a que agora sublinhamos. E nesta dimensão, o papel da artes, da educação artística e da música em particular, traz um valor acrescido, que reside na própria natureza do conhecimento musical, da sua singularidade no quadro do currículo e o que pode representar esse conhecimento no relacionamento interpessoal, desenvolvimento pessoal e bem-estar das crianças e jovens, para além do seu valor intrínseco.

Não é demais citar Swanwick (1994)6 a este propósito: “O valor musical não pode ser experimentado sem conhecimento direto da música, sem o envolvimento com os elementos interativos dos materiais musicais, o caráter expressivo e a estrutura da música. Por meio desses canais, algo é comunicado, algo é transmitido, e algum resíduo de "significado" é-nos deixado. Quando uma obra de arte mexe connosco, é mais do que simplesmente estimulação sensorial ou algum tipo de bondade emocional. Estamos a ganhar conhecimento e a expandir a nossa experiência”(p.38).

E tudo isto foi praticamente perdido durante a pandemia. As limitações das experiências musicais foram imensas não obstante a reinvenção de práticas artísticas e musicais que se fizeram nas escolas através da utilização de diversos meios tecnológicos.

Da leitura das 50 medidas do três eixos enunciados no Plano retiramos apenas duas referências explícitas às artes e à educação artística, no Eixo 1, e que transcrevemos:

Eixo 1: ensinar e aprender

+ Recursos Educativos,

  • Recuperar com Artes e Humanidades - Desenvolvimento de um repertório de iniciativas, sob coordenação do Plano Nacional das Artes, integrando recursos específicos para recuperação e integração curricular

+ Inclusão e bem-estar

  • Conjunto de iniciativas e recursos para a promoção da criação artística e fruição estética e cultural (“O quarto período”);

Relativamente aos recursos educativos, a referência ao desenvolvimento de um repertório de iniciativas coordenadas pelo Plano Nacional das Artes (PNA)7, temos vindo a acompanhar o interesse crescente das escolas pelas iniciativas do PNA já levadas a cabo e o apoio que esta estrutura tem dado à construção de Projetos Culturais das Escolas.

Ficamos preocupados com a outra grande maioria de Escolas/ Agrupamentos que não se manifesta, não procura apoio ou mesmo não consegue ainda trabalhar a dimensão cultural e artística do seu próprio projeto educativo.

Quanto à segunda referência, no quadro do programa + inclusão e bem-estar, não conseguimos obter mais informação sobre o que serão, na prática, “iniciativas e recursos para a promoção da criação artística e fruição estética e cultural” e o que significa o “quarto período”.

É claro que as medidas apresentadas neste Plano deverão ser lidas transversalmente e articuladamente e não especificamente para esta ou aquela área de competências, sendo que no Plano são realçadas medidas para +leitura e escrita, matemática, ciências e artes e humanidades.

A nossa maior inquietação com este Plano é, por um lado, a inoperância das estruturas escolares por falta de apoios ou por receio na utilização da sua autonomia e flexibilidade e, por outro lado, a pouca agilidade das estruturas do ministério da educação na concretização das medidas ora anunciadas e da sua responsabilidade.

Copos

Podemos, no entanto, nesta leitura, olhar para o copo meio cheio ou meio vazio:

  • meio cheio, se acreditarmos nos diversos instrumentos de autonomia na gestão destas medidas e no empenho das comunidades educativas para serem as primeiros a tomar iniciativas que tenham vontade de realizar e adequadas aos seus contextos, sem pressões ou burocracias das tutelas que as inibam de avançar;
  • meio vazio, se estivermos convencidos que nada será feito por falta de apoios, se for necessário pedidos de autorizações específicas para cada medida e se os diretores e as comunidades educativas não forem pró-ativos.

Uma das medidas que consideramos dever ser realizada e que os diretores poderiam integrar nos seus projetos educativo e cultural de escola com base neste Plano, era a concretização da coadjuvação artística e musical aos professores do 1º ciclo: garantir a todas as crianças e turmas do 1º ciclo de cada agrupamento, pelo menos, uma vez por semana a coadjuvação de uma área artística e musical por um professor especializado.

A integração de recursos específicos artísticos para a recuperação e integração curricular, como referido no Plano concretiza-se com tempo dedicado, tempo curricular especializado e práticas musicais regulares e sistemáticas. Só assim se pode, verdadeiramente, criar as bases formativas para um desenvolvimento global das crianças, onde as artes performativas não sejam vividas apenas como acessórios festivos.

Transcrevemos uma das medidas que, não sendo específica para nenhuma área disciplinar, pode incluir as artes e através delas criar-se um projeto integrado e transdisciplinar de recuperação das aprendizagens que também defendemos:

  • Assumida a centralidade da ação precoce e dos anos de transição, recomenda-se às equipas de gestão das escolas a afetação dos recursos adicionais ao apoio ao 1.o ciclo (com especial atenção para o 3.o ano) e aos anos de transição de ciclo;

Esperemos que, com esta abertura, as escolas possam ter programas de recuperação que não sejam mais do mesmo e que os decisores em cada escola, na concretização do seu Plano de recuperação, mobilizem as diversas áreas de competências e nomeadamente as artísticas, assim como a procura de outros parceiros para integrarem diferentes práticas pedagógicas e projetos que se desenvolvam numa perspetiva mais abrangente e se centrem nas dimensões psicossociais das crianças.

Não podemos, no entanto, escamotear a realidade vivida nas escolas por muitos professores de música: serem os únicos no seu Agrupamento, terem a seu cargo 9, 10, 11 e mais turmas, sendo tantas vezes humanamente impossível exigir mais.

Daí depositarmos alguma esperança neste Plano quando lemos a possibilidade de as escolas poderem dispor de “meios pedagógicos para um desenvolvimento curricular mais flexível” e assumir-se que é “fundamental dar mais recursos educativos às escolas para alicerçar respostas”.

E como nada se faz sem as pessoas nos seus contextos, esperamos que os professores de música junto das estruturas de gestão das suas escolas e em colaboração com outros professores se envolvam nas soluções de recuperação das aprendizagens dos alunos, apresentando projetos artísticos e musicais, projetos inter e transdisciplinares, “pressionando” as direções das escolas com propostas adequadas, fundamentadas e com as quais se identifiquem.

Também deixamos uma questão a ser respondida por cada um na sua escola, no quadro deste Plano:

Quantos professores de música precisamos para termos em todas as turmas do 1º ciclo, 1 vez por semana, um tempo de coadjuvação de música do professor titular?

A APEM está sempre disponível para apoiar os professores de música na reflexão e estruturação de projetos artísticos nos contextos das suas escolas.

A todos desejamos umas excelentes férias e muita saúde!

Manuela Encarnação


1 https://dre.pt/application/conteudo/161521475
2 https://apem.org.pt/apoio-ao-professor/legislacao.php
3 https://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf
4 https://apem.org.pt/publicacoes/newsletter-da-apem.php
5 https://www.apem.org.pt/publicacoes/newsletter-da-apem.php?archive=2020-03
6 Swanwick, K. (1994) Musical Knowledge. Intuition, analysis and symbolic forms. London. Routledge
7 https://www.pna.gov.pt/pce-pelo-pais/

Consulte esta newsletter


Arquivo:

2021
2020

A APEM

A Associação Portuguesa de Educação Musical, APEM, é uma associação de caráter cultural e profissional, sem fins lucrativos e com estatuto de utilidade pública, que tem por objetivo o desenvolvimento e aperfeiçoamento da educação musical, quer como parte integrante da formação humana e da vida social, quer como uma componente essencial na formação musical especializada.

Cantar Mais

Cantar Mais – Mundos com voz é um projeto da Associação Portuguesa de Educação Musical (APEM) que assenta na disponibilização de um repertório diversificado de canções (tradicionais portuguesas, de música antiga, de países de língua oficial portuguesa, de autor, do mundo, fado, cante e teatro musical/ciclo de canções) com arranjos e orquestrações originais apoiadas por recursos pedagógicos multimédia e tutoriais de formação.

Saiba mais em:
http://www.cantarmais.pt/pt

Newsletter da APEM

Caros sócios, A APEMNewsletter de abril acaba de ser publicada e encontra-se disponível para visualização no site da APEM.
Clique na imagem em cima para ter acesso à mesma.

Apoios:

 República Portuguesa
Fundação Calouste Gulbenkian

Contactos:

apem associação portuguesa de educação musical

Praça António Baião 5B Loja
1500 – 712 Benfica - Lisboa

  21 778 06 29

  932 142 122

 Envie-nos um email


©  Associação Portuguesa de Educação Musical

©  Associação Portuguesa de Educação Musical